A Constituição estabeleceu um Estado no qual as liberdades de crença e culto são garantidas e a separação entre Estado e instituições religiosas é definida expressamente. Na prática, porém, a permissividade da política com a religião ainda é uma realidade a ser enfrentada
Por Túlio Vianna
O monoteísmo não é nada democrático. A crença em um deus único pressupõe a negação da existência do deus do vizinho. Pior: pressupõe que os mandamentos do seu deus são mais justos que os do deus do vizinho. E é natural que todos aqueles que se arroguem o direito de falar em nome deste deus único e todo-poderoso não primem muito pelo pluralismo. Quem ousaria contestar alguém que fala em nome de um deus onipotente, onipresente e onisciente?
A história está repleta de casos de políticos que sustentaram seu poder em nome de Deus. A teoria do “Direito Divino dos Reis”, em voga no século XVII, deu a Luiz XIV a necessária fundamentação ideológica para tornar-se o maior monarca absolutista da França: “L`État c`est moi” (O Estado sou eu) é a frase que melhor sintetiza o poder do mandatário de Deus na Terra.
No século seguinte, a mão de Deus não evitou que as cabeças de seus representantes na Terra rolassem e só então os ideais iluministas de separação entre direito e religião começaram a prevalecer. Nascia, assim, a concepção de um Estado laico que viria a nortear as democracias ocidentais até hoje.
No Brasil, durante todo o Império, o catolicismo continuou sendo a religião oficial, e as demais eram apenas toleradas (art.5º da Constituição de 1824). Como Estado confessional, o imperador antes de ser aclamado jurava manter aquela religião (art.103) e cabia a ele nomear os bispos (art.102, XIV). Somente com a proclamação da República, o Brasil se tornou um Estado laico, garantindo assim a separação entre Estado e religião (art.72, §3º a 7º da Constituição de 1891).
A atual Constituição brasileira de 1988 não deixa dúvidas quanto ao caráter laico de nosso Estado, garantindo expressamente a liberdade de crença, a liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa (art. 5, VI da CR) e estabelecendo claramente a separação entre Estado e religião (art.19, I, da CR).
E “nunca antes na história deste país” esta separação entre direito e religião foi tão importante. Com a expansão das religiões neo-pentecostais nos últimos anos, o catolicismo, que sempre foi francamente majoritário no Brasil, começou a perder espaço e os brasileiros começaram a deparar com os problemas típicos do pluralismo religioso.
Divergências de crenças de um povo 90% cristão
Pesquisa Datafolha de maio de 2007 mostrou que 64% dos brasileiros se declaram católicos, 17% evangélicos pentecostais ou neo-pentecostais, 5% protestantes não pentecostais, 3% espíritas kardecistas, 1% umbandistas, 3% outra religião e 7% sem religião.
Poderíamos simplificar estes números e afirmar que o Brasil é um país 90% cristão, mas, na verdade, estas religiões divergem sobre pontos significativos de suas doutrinas, a começar por católicos e protestantes. Para os protestantes, a Bíblia é a única fonte de revelação de Deus e eles tendem a interpretá-la em sentido mais literal. Já os católicos acreditam também na Sagrada Tradição, isto é, nos ensinamentos orais transmitidos pelos cristãos ao longo dos séculos, como complementares ao texto bíblico. Daí surgem diferenças importantes: católicos adoram os santos e Maria, mãe de Cristo; os protestantes, não. Os católicos reconhecem o Papa como líder espiritual e acreditam nos sete sacramentos como instrumento para sua salvação; os protestantes creem que somente a fé em Jesus é capaz de salvá-los. Católicos interpretam o livro do Gênesis, que narra a história de Adão e Eva, como uma metáfora; alguns protestantes o interpretam literalmente e defendem o ensino do criacionismo na escola.
Mas há diferenças significativas também entre as Igrejas Protestantes históricas (Batistas, Luteranos, Presbiterianos, Metodistas e outras) e as Pentecostais (conhecidas no Brasil como evangélicas). A principal delas é a de que os pentecostais acreditam que o Espírito Santo continua a se manifestar nos dias de hoje, por meio das práticas de curas milagrosas, profecias e exorcismos, entre outras.
Há diferenças substanciais também entre o Pentecostalismo Clássico (Assembleia de Deus, Congregações Cristãs, Deus é Amor e outras) e o Movimento Neo-Pentecostal (Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Renascer em Cristo e outras). A primeira delas é visível: os pentecostais clássicos se vestem com roupas bastante formais por imposição das Igrejas: homens de terno; mulheres de saias longas e cabelos compridos. Outros usos e costumes rígidos normalmente são impostos aos fiéis, como por exemplo, não assistir à TV e não praticar esportes e, para as mulheres, não se depilar ou usar anticonceptivos. O conservadorismo é a tônica da doutrina pentecostal clássica, que se baseia no ascetismo e no sectarismo. Já os neo-pentecostais são bem mais liberais, não se vestem de forma determinada e têm como principal foco a Teologia da Prosperidade, que propugna que os fiéis têm o direito de desfrutar uma vida terrena com saúde e riquezas materiais. Para tanto, precisam demonstrar sua devoção a Deus doando suas economias de modo a se tornarem credores de Deus em uma dívida que será paga com a concessão das dádivas divinas. O sacrifício ascético do corpo é substituído por um sacrifício econômico em honra de Deus.
Finalmente, os neo-pentecostais têm uma divergência inconciliável com os espíritas. Ambos creem em manifestações sobrenaturais na vida cotidiana. Os espíritas acreditam na reencarnação e creem que estas manifestações são causadas por espíritos de pessoas comuns que faleceram e ainda não reencarnaram. Já os neo-pentecostais não acreditam em reencarnação e nem na possibilidade de os mortos se comunicarem com os vivos. Para eles, estes espíritos são na verdade manifestações do demônio e, portanto, precisam ser combatidos. Daí o motivo de tanta hostilidade entre evangélicos e espíritas: enquanto estes creem na possibilidade de conversar com os espíritos de parentes e amigos já falecidos, aqueles os acusam de conversar com demônios.
Neste contexto fervilhante de crenças, nada mais natural que se retomem as discussões sobre a importância do Estado laico. Enquanto o Brasil era um país com população quase que exclusivamente católica, a maioria simplesmente impunha suas crenças sobre a minoria que, de tão pequena, não levantava sua voz para lutar pelo Estado laico.
Basta ver os crucifixos afixados nas paredes dos tribunais e órgãos públicos brasileiros. Se até então o símbolo do predomínio católico em nossos tribunais só incomodava à pequena minoria não-cristã da população, atualmente muitos protestantes já se insurgem contra ele. Infelizmente, em 2007, o Conselho Nacional de Justiça decidiu que os crucifixos nos tribunais não violam o princípio constitucional da laicidade, por se tratar de um costume já arraigado na tradição brasileira. Com este simplório argumento, os conselheiros do CNJ justificariam até mesmo a escravatura que, quando foi abolida em 1888, ainda era costume no Brasil. Se costume fosse fundamento jurídico para justificar o próprio costume, as mulheres ainda teriam que se casar virgens, não haveria o divórcio e o adultério ainda seria crime. Fato é que tribunais e órgãos públicos são mantidos com dinheiro público e não devem expressar as crenças pessoais de seus dirigentes. Os crucifixos não são, pois, apenas um símbolo do predomínio católico, mas antes de tudo de uma apropriação privada da coisa pública para a manifestação de crenças pessoais.
Ensino religioso nas escolas públicas
A questão atualmente mais polêmica que decorre do princípio constitucional da laicidade é a do ensino religioso, de matrícula facultativa, nas escolas públicas, previsto expressamente no art.210, §1º, da Constituição Brasileira.
O Acordo Brasil-Vaticano (Decreto 7.107/10) que em seu art.11, §1º, prevê “o ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas” provocou imediata reação da sociedade civil ao colocar em risco a igualdade de tratamento entre as religiões. A constitucionalidade do dispositivo está sendo contestada atualmente no Supremo Tribunal Federal (ADI 4.439) pela Procuradoria-Geral da República, que defende corretamente que o ensino religioso no Brasil deva ser não-confessional, limitando-se, pois a um apanhado teórico da diversidade de religiões existentes em nosso país.
Melhor seria, porém, que o Estado deixasse cada família decidir sobre a melhor formação religiosa de seus filhos, matriculando-os em cursos fornecidos pelas próprias Igrejas e outras instituições religiosas. Uma emenda constitucional que abolisse o ensino religioso nas escolas públicas resolveria de vez a controvérsia relegando a formação religiosa para a esfera exclusivamente privada.
A meta do Estado laico
O Estado laico ainda é uma meta a ser perseguida pelo Direito brasileiro. Se na questão dos crucifixos e do ensino religioso, a manifestação de cristãos não-católicos tem sido decisiva para colocar em pauta os debates, as violações do princípio da laicidade tendem a ser menosprezadas quando há consenso entre católicos e protestantes.
Veja-se, por exemplo, o art.79, §1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, que prevê que “a Bíblia Sagrada deverá ficar, durante todo o tempo da sessão, sobre a mesa, à disposição de quem dela quiser fazer uso”. Se o Estado é de fato laico e a religião não deve ser fundamento da elaboração das leis, qual sentido há neste dispositivo? Se o deputado é cristão, que compre sua própria Bíblia e a leve consigo.
O nome do deus monoteísta tem sido usado sem maiores pudores na esfera pública, sob o argumento de que contemplaria todas as religiões. Alega-se que o preâmbulo da Constituição de 1988 se refere expressamente à “proteção de Deus” e, portanto, o ateísmo estaria excluído da liberdade de crença. Trata-se de um falso fundamento jurídico, já que o preâmbulo, por sua própria definição, é o texto que antecede a norma e, portanto, não faz parte dela. Em suma: não tem qualquer valor normativo.
A liberdade constitucional de crença é também uma liberdade de descrença, e ateus e agnósticos também são cidadãos brasileiros que devem ter seus direitos constitucionais respeitados. O mesmo se diga em relação aos politeístas, que acreditam em vários deuses e não aceitam a ideia de um deus onipotente, onisciente e onipresente.
Um bom exemplo do uso do nome de Deus com violação do princípio da laicidade é a expressão “Deus seja louvado” no dinheiro brasileiro. Como não incomoda à maioria da população, acaba sendo negligenciada em detrimento dos direitos constitucionais dos ateus, agnósticos e politeístas, que ainda não são bem representados no Brasil. Já se vê, porém, algumas destas expressões riscadas à caneta nas notas brasileiras, o que é uma clara manifestação de descontentamento com o desrespeito à descrença alheia.
O paradoxal desta menção de Deus no dinheiro brasileiro é que a Bíblia narra (Mateus: 22, 21) uma passagem na qual Jesus rechaça uma tentativa de uso político de seus ensinamentos e reconhece a importância do Estado laico, referindo-se justamente à moeda romana: “Dai o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus”. Das duas, uma: ou o Deus cristão mudou de ideia nestes últimos dois mil anos ou seus representantes na Terra andam excedendo os limites da procuração por Ele outorgada.
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http://www.revistaforum.com.br/noticias/2010/12/20/efetivar_o_estado_laico/
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
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