Pôster do filme “Criação” (Creation) - baseado no livro “Annie’s Box”, escrito por Randal Reynes, tataraneto de Charles Darwin, o criador da teoria da evolução.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

As duas personalidades de Jesus Cristo, segundo Philip Pullman


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E se Jesus tivesse sido duas pessoas? Philip Pullman (foto) lança essa hipótese do seu modo, como defensor da ficção-mágica. Não que ele pretenda subverter os textos sagrados com um sério tratado de revisionismo antiteológico. Mas, no livro "Il buon Gesù e il cattivo Cristo" [O bom Jesus e o mau Cristo], que será publicado na Itália em setembro pela editora Ponte alle Grazie (168 páginas, que será apresentado no dia 2 em Milão), o escritor inglês de 64 anos desafia os ícones transmitidos pela Igreja com uma história de veia fabulosa e sutilmente irônica.

A reportagem é de Leonetta Bentivoglio, publicada no jornal La Repubblica, 30-08-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Por outro lado, a religião é, desde sempre, um ponto de discórdia para Pullman, célebre autor da trilogia fantástica "A bússola de ouro", "A faca sutil" e "A luneta âmbar" (Ed. Objetiva): um best-seller para os jovens (mas muito lido pelos adultos), que levantou controvérsias por causa de suas metáforas sobre os danos da teocracia.

Agora, o livro sobre Jesus, o tom leve e poético ("tem a beleza austera da parábola do Grande Inquisidor dos Irmãos Karamazov", afirmou o crítico literário do The Guardian), chega para nos narrar as ações de dois gêmeos muito diferentes, Jesus e Cristo.

Um é alegre, vital, inspirado e revolucionário. O outro é frágil, manipulador e rancoroso. Um prega para as multidões com sucesso, enquanto o segundo, intelectual e escritor de pouca qualidade, transcreve os discursos do irmão para os fólios de pergaminho. E quando um é crucificado, o outro floreia mentiras, inventando os milagres de um super-herói para seduzir a fantasia popular.

Mas a verdade de Pullman é que a anunciação foi um ato sedutor, e o corpo "ressuscitado" é desaparecido por uma engano.

Eis a entrevista.

Qual é a gênese dessa ideia provocante?

Há sete ano, no National Theatre de Londres, dialoguei publicamente sobre a religião com o arcebispo de Canterbury, líder da Igreja Anglicana e fã do meu trabalho, do qual ele admira as tomadas de posição contra os vínculos dogmáticos impostos pelos cultos. Perguntou-me por que, na trilogia, eu nunca havia me referido a Jesus, e eu respondi que gostaria de lhe dedicar um livro. Tempos depois, quando me foi proposto participar de uma série sobre os mito revisitados por escritores contemporâneos, decidi escrever a história de Jesus em perspectiva mítica. Buscando uma abordagem original, me dei conta de que Jesus é um nome, e Cristo, um atributo: é a palavra grega para Messias e o adjetivo hebraico de Deus. Escolhi, portanto, trabalhar sobre a distinção entre homem e mito.

Existem fundamentos para essa subdivisão?

Jesus nunca se referia a si mesmo como Cristo. Ou melhor: rejeitava o atributo, adotado pelos seguidores e particularmente pelo apóstolo Paulo, que, nas epístolas, fala 150 vezes de Cristo e nomeia Jesus só 30 vezes. Na época em que Paulo escreve, uma geração depois da morte de Jesus, já havia sido construída uma imagem fictícia e artificial do Messias.

Por que o seu Cristo se preocupa em registrar todas as coisas por escrito?

É uma personificação da Igreja, que sempre se esforçou por estabelecer uma versão oficial da história. Cristo escreve aquilo que acontece, mas troca aquilo que deve se tornar mais apropriado às exigências da autoridade religiosa.

Embora a substância da narração seja absurda, tudo no livro soa como reconhecível e familiar.

Isso acontece porque as minhas fontes são os Evangelho, dos quais obtive, transferindo sobre os dois personagens, muitos episódios, de Caim e Abel à parábola do Filho Pródigo. Também utilizei os Evangelhos Apócrifos, mas muito menos. Os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, não por acaso consagrados pelo poder eclesiástico, são os mais eficazes e os mais bem escritos.

O seu duplo Jesus foi condenado pela Igreja?

Não estou sabendo, mas certamente causou incômodos a alguns, também porque, na Inglaterra, o livro foi um best-seller. Um jesuíta australiano, Pe. Gerald O'Collins, escreveu um ensaio inteiro para contestar os meus argumentos.

É verdade que os integralistas religiosos o ameaçaram e o senhor teve que andar com escolta?

Os jornais exageraram... Ainda antes da publicação do livro, recebi cerca de 50 cartas de fanáticos, principalmente radicais anglicanos, e, por ocasião da apresentação em público por causa do lançamento do livro, os organizadores quiseram que houvesse algumas pessoas prontas para intervir em caso de interrupções ou agressões. Mas depois não aconteceu nada.

A religião está constantemente no centro dos seus interesses. Isso não contradiz o seu ateísmo declarado?

Não! As grandes perguntas da vida são religiosas e científicas: por que estamos aqui? O que existe além de nós? De onde vêm o bem e o mal? Em todas as culturas e religiões, as interrogações que os seres humanos se colocam são as mesmas, e eu também, como ateu, não deixo de enfrentá-las.

Podemos dizer que toda a sua obra é um ato de acusação à opressão teocrática?

Certamente. Não me importa que as religiões não digam a verdade: por que eu deveria me preocupar com isso se o meu trabalho consiste em lidar, todos os dias, com coisas inventadas? Eu ataco a religião usada como garantia de autoridade política, como ocorreu mais vezes na história. A religião pode fornecer um ótimo pretexto para cometer crimes infames. Mas nem sempre a teocracia se baseia em um culto religioso. A União Soviética também era ateia: o poder era o partido, a bíblia era "O capital", e o KGB era a Inquisição.
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