quarta-feira, 22 de junho de 2011
Diretor da revista THC: Argentina está perdendo medo de falar de drogas
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Um homem negro fumando um gigantesco cigarro de maconha estampava a capa de uma revista nas bancas de Buenos Aires, quando cheguei na cidade, em janeiro. "O Mais Grande", dizia a manchete, errando na gramática de propósito, para brincar com a palavra "mais", do português, e a construção "más grande", em espanhol.
"THC, a revista da cultura canábica" - chama-se a revista. THC é a sigla de Tetraidrocanabinol, o princípio ativo da maconha.
Bem-humorada, mas também informativa, a revista traz, em pouco mais de 60 páginas, um apanhado das notícias internacionais sobre o tema, publica reportagens especiais, tem editoria de saúde e cultura. A seção de gastronomia dá um novo sentido para "salada de folhas verdes".
O painel do leitor exibe fotos de fumantes - casais, senhoras, amigos - ao lado de suas plantações privadas. A publicação é indicada apenas para adultos, diz na contracapa.
Assim como no Brasil - onde a Suprema Corte liberou as marchas da maconha e um ex-presidente é protagonista de um documentário sobre o tema - a Argentina também vem discutindo o assunto com mais fervor por esses dias.
Em maio, 15 mil pessoas participaram da "Marcha de la Marihuana" en Buenos Aires, e na semana passada o Congresso começou a discutir mudanças na lei antidrogas. Para entender a discussão deste lado da fronteira, fui, na sexta-feira, conhecer a redação da THC e conversei com Sebastián Basalo, o diretor da revista.
Fumado no Rio de Janeiro
A THC funciona num prédio residencial, na rua Humahuaca, em Abasto, bairro central de Buenos Aires. As paredes são decoradas com capas de edições anteriores da revista, fotos de plantações de maconha e o clima é de descontração. Todos por ali aparentavam ter 20 e tantos ou 30 e poucos anos.
A revista foi lançada em 2006 com a contribuição dos amigos, que ajudaram a pagar a primeira impressão. Foi feito um acordo com a distribuidora (ela cobrava o preço adiantado de três edições, mas ele só tinham como pagar a primeira), e dez mil exemplares foram colocados à venda em Buenos Aires. Oito mil foram vendidos, sem que nenhuma propaganda de divulgação tivesse sido feita.
Nesses anos, a THC foi alvo de uma tentativa frustrada de censura numa feira literária e de cinco denúncias por apologia às drogas. Mas os casos sequer foram abertos pela promotoria pública. A Revista THC estampa na capa de toda edição: "Não existe eleição livre sem livre acesso à informação".
Hoje a revista é feita pelo trabalho de 40 pessoas e já se autossustenta - 80% do orçamento da revista vem das vendas em banca e apenas 20% são de publicidade. A tiragem mensal já está em 30 mil exemplares.
As capas da THC costumam estampar um tema que relacione o uso da maconha a um assunto da pauta nacional. Quando a Argentina lembrava, em março, a data do último golpe militar, a THC saiu com a capa: "Maconha nos anos 70". Se o tema é política para terceira idade, cabe a capa: "Velhos verdes, a maconha na terceira idade". Dias das Mães? "Maconha e Gravidez".
Na edição especial sobre o Brasil, a primeira reportagem fazia um panorama do uso da maconha no Brasil - como é nossa lei, os problemas do tráfico, em especial no Rio, e os cigarros "de dimensões intimidantes" que se fumam no País.
Na mesma edição há o testemunho de um argentino "fumado" andando pelas ruas do Rio de Janeiro. Ele vai narrando suas esfumaçadas aventuras pela cidade enquanto faz comentários do tipo "Ipanema é incrível para os fumados, mas ainda é a praia mais careta do Rio"; "O posto 9, legendário rincão de fumantes, hoje é uma praia gay".
"Despenalización Ya!"
Sebastián Basalo é, hoje, uma autoridade do debate sobre drogas na Argentina. Passa dois terços do seu dia, segundo me contou, dando entrevistas ou discutindo políticas sobre o tema. Só um terço do seu tempo é dedicado, de fato, à revista. Antes de me receber, estava ao vivo numa rádio.
A revista defende a despenalização do uso e porte de maconha e a regulamentação do plantio para consumo próprio.
Em 2009, a Suprema Corte argentina declarou inconstitucional a penalização de maiores de 18 anos que estejam portando pouca quantidade de maconha, se essa for para uso pessoal e não oferecer risco para terceiros. A Corte também orientou o Congresso a aprovar mudanças na lei. Mas, segundo Basalo, as prisões de usuários seguem ocorrendo.
"Por ano na Argentina são abertas 17 mil causas judiciais por porte ilegal de drogas, sendo que uma media de 70% desses casos terminam classificados como usuários e apenas 3% como comércio massivo", relata Basalo. Para ele, os números são as prova do fracasso do combate ao tráfico. "A polícia se distrai com os fumantes ao invés de investigar o narcotráfico".
Basalo defende que, ao plantar o que consome, o usuário deixa de financiar o tráfico e tem maior controle sobre sua própria saúde, uma vez que não mistura a planta com produtos químicos, como fazem os traficantes.
Outra defesa do diretor da revista é pelo consumo consciente da droga: ao decidir que vai fumar maconha ou usar outra droga, a pessoa precisa saber onde está se metendo.
"Se alguém lhe diz que, se você cair numa piscina funda, você vai se afogar e repetir essa mensagem mil vezes, quando você cair na piscina, o que vão acontecer? Você vai se afogar do mesmo jeito, porque deviam ter lhe ensinado a nadar ao invés de só dizer que a piscina era funda".
Uma das editorias da revista chama-se "Consumo - Cuidado", e em uma das colunas fixas sempre um especialista fala sobre redução de riscos para quem opta por usar alguma droga - de maconha a anabolizantes.
"Nunca diríamos: fume maconha porque é bom. O que dizemos é que gostamos de fumar. Mas também explicamos seus riscos".
E continua: "Você já viu, em reportagens sobre vinho, avisos que digam: 70% da violência doméstica é desencadeada por consumo de drogas, 75% da população argentina já experimentou álcool?".
A primeira Marcha da Maconha na capital argentina, em 2007, foi organizada pela revista. Das mil pessoas participantes, 15 saíram presas. Em 2008 foram 2 mil manifestantes, 39 presos. Naquele ano, o então ministro da Justiça, Aníbal Fernandez, disse publicamente que a polícia deveria parar de perseguir jovens para investigar o narcotráfico. O recado surtiu efeito no ano seguinte: 3 mil manifestantes, nenhuma repressão policial.
Em 2010, quando os projetos de alteração na Lei de Drogas argentina foram apresentados (um deles escrito pela equipe da revista e subscrito por duas deputadas), a Marcha cresceu para 5 mil manifestantes, e chegou a 15 mil este ano, sem nenhuma detenção.
Foram três principais bandeiras levantadas pelos manifestantes nesse 7 de maio: o plantio para consumo próprio; um plano nacional de atendimento gratuito a viciados em drogas; e o reconhecimento do uso da maconha para fins medicinais.
THC brasileña
Na quarta-feira passada (15), Sebastián Basalo participou de audiência pública na Câmara dos Deputados para discutir, na Comissão de dependência e controle do narcotráfico, mudanças na lei antidrogas da Argentina.
"Foi a primeira vez, em 22 anos, que o Congresso formou uma comissão para discutir o assunto, e, das 40 pessoas convidadas, 37 se posicionaram a favor da despenalização. Agora é discutir os pormenores de como será isso".
"A Argentina está perdendo o medo de falar sobre drogas", ele me diz, já perto do final da entrevista, enquanto outras duas pessoas já o aguardam para sua próxima reunião na recepção da revista.
Antes de ir, comentei que achava complicado uma revista como a THC circular no Brasil sem sofrer represálias muito mais duras dos grupos conservadores do que aconteceu com a revista na Argentina. E ele me contou uma novidade.
Há um ano e meio, ele está conversando com investidores e advogados para lançar seu próximo projeto: a THC, que já circula no Uruguai e Peru, deve ganhar uma filial no Brasil, com redação montada em São Paulo e primeira tiragem de 100 mil exemplares.
Carol Pires é jornalista. Foi repórter do Estadão, iG e Blog do Noblat. Hoje mora em Buenos Aires.
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