"O que se pode dizer da arquitetura de São Paulo?", indaga o escultor Emanoel Araujo, 71 anos, diretor e fundador do Museu Afro Brasil. "Não sendo arquiteto, mas como um simples visitante da cidade, no sentido de olhar a cidade, a arquitetura civil ficou relegada a um gosto duvidoso". Defensor da integração das artes plásticas com a arquitetura, o artista baiano lança o livro "Emanoel Araujo - Escultor", em 10 de dezembro, a partir das 10h, na Dan Galeria, na capital paulista.
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A obra, um projeto editorial da empresa de design gráfico Via Impressa (desenvolvido por Carlos Magno Bomfim), recupera e documenta as obras públicas de um dos maiores escultores brasileiros em atividade.
Araujo avalia que as esculturas retratadas no livro se alinham a um sonho de harmonização da arquitetura civil. Mas, olhando a metrópole onde vive há quatro décadas, percebe o fracasso de sua geração. Afinal, venceu o neoclássico.
"Isso vai da arquitetura de classe média até a arquitetura da alta burguesia com seus telhados de ardósia, esperando que um dia neve no Brasil, suas Place des Vosges, suas extravagâncias riquíííííííssimas, seus prédios trancados dentro de um shopping center que garante total segurança aos seus condôminos", ironiza Emanoel Araujo, que é também um provocador bem-humorado.
Nesta entrevista a Terra Magazine, o artista comenta o lançamento do livro, defende o diálogo da arte popular com a erudita e conta como concebeu a exposição "O Sertão: da Caatinga, dos Santos, dos Beatos e dos Cabras da Peste", no Museu Afro Brasil. Favorável às ações afirmativas, ainda que não esteja preso a todos os dogmas do movimento negro, o escultor revela indignação ao rebater os críticos das cotas.
"É impressionante que, em pleno século 21, o Brasil não tenha conseguido formar uma sociedade múltipla, onde entram negros, mulatos, índios e brancos. Meia dúzia de intelectuais ainda são contra as cotas porque o Brasil vai criar uma "situação" de raça igual aos Estados Unidos. Será que essas pessoas não se mancam? (...) Por que o Brasil não tem um diplomata negro? Por que não tem um ministro negro? Por que não tem um governador negro, se 60% da população é negra ou afrodescendente? Que história é essa?"
Emanoel Araujo contesta a preocupação do poeta Ferreira Gullar com o surgimento do conceito de "literatura negra". Em artigo na Folha de S.Paulo (4/12/2011), Gullar opinou: "Os negros, que para cá vieram na condição de escravos, não tinham literatura, já que essa manifestação não fazia parte de sua cultura. Consequentemente, foi aqui que tomaram conhecimento dela e, com os anos, passaram a cultivá-la". Para o escultor, há o sentimento, no Brasil, de "que o lugar do negro é numa África imaginária".
"Por que o Ferreira Gullar sai do alto da sua poesia e da sua erudição pra dizer que não existe literatura na África? Será que ele não sabe que a Nigéria tem um poeta que é Prêmio Nobel de Literatura (Wole Soyinka)? Será que ele não sabe? O que ele ambiciona (o Nobel), a Nigéria já tem!"
Confira a entrevista.
Terra Magazine: O livro levanta sua contribuição à arte pública, revelando em muitos casos como você se integrou à arquitetura. É estranho esse confronto, porque essa harmonia não é mais tão comum. A integração das artes plásticas com a arquitetura está em crise?
Emanoel Araujo: Completamente. Havia, anteriormente, um projeto de percentagem de obras de arte para obras construídas. Alguns arquitetos tinham essa fantasia ou esse sonho de que uma linguagem complementaria a outra. Era a integração da arte com a arquitetura, mesmo porque muitas escolas de arquitetura nasceram nas escolas de Belas Artes. Os arquitetos tinham uma formação também de artistas.
Nas gerações dos anos 60 e 70, Claudio Tozzi, Gilberto Salvador, Takashi Fukushima, Antonio Hélio Cabral são por formação arquitetos. Mas acho que os arquitetos perderam os empregos, assim como os artistas, diante dessa enxurrada de prédios neoclássicos sem nenhum caráter. Com isso, decretou-se o fim dessa integração da escultura ou da obra de arte pública com a arquitetura. Mas até que não posso me queixar muito, porque sempre tem obra em Salvador.
Agora mesmo fiz um prédio na Avenida Sete, e em São Paulo o Ruy Ohtake pôs uma obra grande no Hotel Renaissance, na Alameda Santos, outro prédio na mesma rua... Isso ficou muito restrito a um ou outro arquiteto. (João Carlos) Cauduro, por exemplo, sempre que pode me chama. Agora, por outro lado, essa questão de 1%, que se desenvolveu muito na França, 1% da arquitetura destinada à obra de arte, é muito interessante, porque aí a França ganhou um (Alexander) Calder e outros artistas interessantes. O mesmo acontece em Pernambuco. Para você ter o alvará, é preciso que tenha a obra de arte de um artista pernambucano inscrito no sindicato de artistas.
Terra Magazine: Salvador já teve, nos anos 50.
EA: É, também já teve. Aí surgiram as aberrações em Recife. Hoje, as construtoras põem qualquer coisa nos seus edifícios, à guisa de cumprir essa determinação da prefeitura. E isso é uma desgraça porque Recife está cheia de equívocos nos seus prédios ao longo da avenida Boa Viagem e mesmo nos bairros que estão sendo desenvolvidos. O fracasso é geral.
Terra Magazine: Como você vê a arquitetura civil de São Paulo, a cidade onde você mora?
EA: Pois é, o que se pode dizer da arquitetura de São Paulo? Uma cidade que tem a tradição da arquitetura moderna, da arquitetura do Edifício Esther, de Vital Brazil, e outros prédios dessa arquitetura de vanguarda a partir da casa modernista de Warchavchik, do Vilanova Artigas, que produziu uma geração interessante de arquitetos, como Paulo Mendes da Rocha, Ruy Ohtake... E outros e outros arquitetos. Mas acho que a arquitetura acabou, num certo sentido. Não sendo arquiteto, mas como um simples visitante da cidade, no sentido de olhar a cidade, a arquitetura civil ficou relegada a um gosto duvidoso.
Terra Magazine: De novo-rico?
EA: Um gosto industrial... Isso vai da arquitetura de classe média até a arquitetura da alta burguesia com seus telhados de ardósia, esperando que um dia neve no Brasil, suas Place des Vosges, suas extravagâncias riquíííííííssimas, seus prédios trancados dentro de um shopping center que garante total segurança aos seus condôminos. E a arquitetura que devia partir da coisa pública... Os projetos desapareceram. Através deles os arquitetos teriam condições de mostrar sua invenção. Mas, no resto do mundo, estão fazendo coisas maravilhosas. (Daniel) Libeskind na Alemanha, (Santiago) Calatrava na Espanha, alguns arquitetos ingleses e japoneses...
Terra Magazine: Renzo Piano...
EA: Renzo Piano, o francês Jean Nouvel... Estas são as marcas deixadas pelos governantes. A Europa tem total consciência de que um mandato de governo se faz com grandes obras e grandes nomes. Diferentemente do Brasil, que fica muito a desejar na hora de respeitar seus valores.
Terra Magazine: O livro "Emanoel Araújo - Escultor", que registra sua obra pública, exigiu uma longa pesquisa. Como foi feita?
EA: Na realidade, a pesquisa é muito mais da Via Impressa. Eu pouco me envolvi no livro. Eu fico muito pouco à vontade, vamos dizer, em rever tudo isso. Por outro lado, agora que o livro está pronto, com esse belo texto de Paulo Hoerkenhoff, fico achando que realmente produzi muito. E olhe que faltam coisas mais antigas, que não têm documentação fotográfica. Devo muito ao Magno (Bomfim), a pesquisa dele foi muito em cima da escultura verdadeiramente. Ele quis separar o artista escultor do gravador, do gestor, do diretor de museu, do curador.
Terra Magazine: Você tem essa percepção? Ao desenvolver intensamente o trabalho de curador, você deixou de divulgar mais a sua obra? Houve um desequilíbrio?
EA: Eu acho que não. A linguagem que eu escolhi é uma linguagem muito difícil. Tive que deixar a xilogravura porque havia aí uma questão: naturalmente, a gravura evoluiu para a escultura. Foi uma passagem natural. A gravura foi se abstraindo, as formas foram ganhando volume, um real volume na medida que se revelou tridimensional. A escultura foi, digamos, o meu passo seguinte. Neste passo seguinte, aconteceu a escultura dos anos 70.
E eu só me meti na questão dos museus em 1981, quando Antonio Carlos (Magalhães, então governador) me chamou para dirigir o Museu de Arte da Bahia. Meu trabalho estava ligado à escultura, trabalhar com arquitetos, integrar a escultura à arquitetura, com os arquitetos Jader Tavares, Fernando Frank, Fernando Peixoto, mesmo aqui em São Paulo e em Brasília. O trabalho foi ficando muito circunscrito à escultura. E o campo da escultura ainda é, e por muito tempo será, uma indesejável presença. Poucos são os espaços destinados, numa casa, a um objeto tridimensional, no lugar da pintura. O status da pintura ainda permanece.
Terra Magazine: Mas isso é uma coisa brasileira, né?
EA: Uma coisa tipicamente brasileira. Mas estamos no Brasil, fazer o quê? Com isso, a escultura, ou melhor, o escultor, sempre resvala sua produção no Design, numa direção do design, do pé de mesa, do cinzeiro, de fazer coisas desse tipo. Como eu vinha de uma formação de artes gráficas, de uma formação de interesse múltiplo, como de museus, de colecionismo, então eu dei um pulo momentâneo para a questão de gestor cultural.
Foi um acidente, eu estava imbuído do espírito de fazer acontecer. Assim foi na Bahia. Só que, na Pinacoteca (de São Paulo), foram dez anos. Agora, sete anos no Museu Afro Brasil. Fui ficando, ficando.... Faço um trabalho que envolve pesquisa, que envolve conhecimento, que envolve arquitetura, cenografia, iluminação, muitos aspectos do meu trabalho. Sou resultado dessa minha formação, estou voltado pra uma série de atividades que são e não são antagônicas, são e não são continuadas, são e não são restritas à obra do ateliê. O campo da escultura é muito pequeno, muito difícil por todos os aspectos. Pra quem compra, pra quem expõe... Para guardar uma obra é preciso um galpão gigantesco. No Brasil como os brasileiros. Viver perigosamente é um princípio.
Terra Magazine: Tenho um palpite também. Você é da geração do CPC (Centro Popular de Cultura), sempre está ligado ao debate político, gosta de discutir política. Seu trabalho de gestor de museus e sua preocupação em se estender além de sua obra tem muito a ver com o espírito de sua geração, não acha?
EA: Sim, dos anos do CPC, daquela coisa política envolvendo atividades culturais voltadas para o povo. Acho que não sei avaliar se uma coisa prejudicou a outra. Chega uma certa idade que fazer exposição é uma coisa muito chata. Embalar obras, pegar obras... A mobilidade da gravura acaba viciando, porque você pega um rolo de papel, põe debaixo do braço e vai mundo afora... A escultura não possibilita isso.
Expor pra lá e pra cá, renovando a presença no mercado... A memória da arte brasileira é sempre complicada para mim. Quer dizer, não é que seja complicada. A paciência que eu tenho pra dedicar um tempo pra obra pública não é a mesma pro meu trabalho. Levei um ano pra fazer a exposição do Sertão, pra ela se realizar, para eu ler. A escultura nasce de uma outra forma. A obra nasce pela continuidade do meu trabalho, pelo vocabulário que você vai desenvolvendo. A obra vai fluindo, às vezes vem o cansaço e você é obrigado a parar, a refletir. A exposição é sempre um ponto de reflexão, é uma forma de você se desnudar através das obras de um espaço que já não é o seu, é o de uma galeria de arte. É complicado.
Terra Magazine: Como você avalia a exposição midiática da arte? O retorno da imprensa é satisfatório? A mídia já foi muito aberta à arte. E hoje?
EA: Pois é. Venho de uma época em que a imprensa tinha uma participação ativa na vida dos artistas, e não só porque tinha crítica de arte, pessoas eruditas, bem formadas, com opiniões que podiam desagradar mas que ajudavam a construir sua carreira. Isso foi se esvaindo, estranhamente, com a morte dessas pessoas. Convivi com Geraldo Ferraz, Walter Zanini, José Geraldo Vieira, Quirino da Silva, um monte de pessoas...
Terra Magazine: Mesmo os poetas, como Manuel Bandeira, escreviam sobre vernissages.
EA: A mídia foi se ausentando. Antigamente, você ia pra redação levar o convite, falava com o redator-chefe... Quantas vezes frequentei a Folha de S.Paulo, o Diário de Noticias na (rua) Sete de Abril. Havia outra forma. Não sendo saudosista, havia outro approach entre o artista e a imprensa. Quando cheguei à Pinacoteca, eu estranhamente descobri que os anos que vivi em São Paulo, desde 1965, não eram conhecidos.
Em 1992, quando anunciaram que eu estava sendo convidado, as pessoas perguntaram: "Não tem gente suficiente em São Paulo? Pra que trazer um baiano?". Aí eu descobri que as pessoas não sabiam que eu morava em São Paulo, que eu era conhecido num circulo fechado, certamente dos artistas. Mas isso era um problema de informação da mídia. A mídia foi esquecendo a formação das pessoas. Em compensação, entrou uma coisa chamada assessoria de imprensa, que é o interlocutor. Ela faz um press-release, que fica ao sabor de publicarem ou não.
Não sei dizer, na realidade, o que é que acontece. Ou é por ignorância ou é mesmo porque o Brasil sempre prefere divulgar o que é de fora. Você pega o jornal, normalmente olha um suplemento cultural, o caderno 2 de vários jornais, aí você se pergunta se está no Brasil... Fala de artista de Hollywood, fala de estrela americana, fala do artista de rock... O que é isso? Por que o Brasil é tão subserviente ao que é de fora? De lá pra cá a recíproca não é verdadeira.
Você abre os jornais ou liga a televisão na Europa e nos Estados, e você não vê o Brasil em nenhum noticiário. A TV Globo terminou um telejornal com os 20 anos da morte de Freddie Mercury. Escute, por que ele precisa estar na Globo? Por que ela precisa dar tanto tempo aos 20 anos da morte de Freddie Mercury? Não consigo entender por que a gente está tão subserviente ao informar o que está acontecendo no mundo. Precisamos dessa informação, ou preferiríamos saber do que acontece no Amazonas, que não seja só a questão da mata? O Brasil é pouco falado. Fala-se dos assaltos a bancos, dos roubos, dos ensinamentos de defesa que a televisão difunde... Isso é um equívoco.
Terra Magazine: A mídia pode não estar voltada para a arte, de uma maneira mais ampla, mas há um culto a determinados artistas que põem os preços de suas obras em valores altíssimos. Tem esse jogo quantitativo?
EA: Sei lá, tem o valor. Sempre digo: o mercado tem as suas próprias leis. E isso se aprendeu aqui. Chegou aqui essa questão do mercado que estabelece o que é bom através do que é caro, para uma gente que é mal-informada. Ou uma gente que tem dinheiro demais e está sobrando dinheiro. Eu me abstenho de ter uma posição em relação a isso, porque não quero ser injusto com o talento de ninguém, com o valor artístico de ninguém. Mas que existe aí uma manipulação violenta, existe. Isso está a olhos nus, claramente exposto. Nada a fazer, a não ser esperar que o tempo resolva essa questão.
Terra Magazine: Mas, faz sentido um quadro, no Brasil, valer mais de um milhão?
EA: Ah, eu queria tanto que uma obra minha vendesse por um milhão! Ficaria tão feliz de ser mais um milionário, já que a Forbes diz que todo mundo que tem um milhão é milionário... (risos) Já que o Brasil produz 19 milionários por dia, eu ficaria feliz em ser um milionário. Estou muito longe, mas seguramente não vou ver esse milhão na minha obra. Lamento muito, mas fazer o quê?
Terra Magazine: Sorry, periferia.
EA: I'm sorry, periferia. (risos)
Terra Magazine: Na exposição dos sertões, no museu Afro Brasil, mostra um Brasil profundamente religioso, um Brasil com sentimentos primitivos, que não é comumente visto. O que lhe motivou a fazer essa exposição?
EA: Essa exposição surgiu há muito tempo, né? Já tinha feito uma exposição dessa, não com essa profundidade. Quando eu estava fazendo uma exposição, a "Cultura Viva do Povo Brasileiro", andei com Célio Turino pelo sertão. Fui com a secretária de Cultura do Ceará, Claudia Leitão, a uma cidade chamada Russas, perdida no meio do mundo. Ela tinha convidado Célio Turino para assistir à premiação dos mestres.
O Ceará tem essa coisa louvável de designar mestres - artista ou artesão -, que recebem uma dotação, um salário mínimo, porque ele é uma fonte de memória. Isso é inteligente. Fiquei muito encantado com essa história. Na igrejinha de Russas tinha uma placa: "Aqui no dia tal passou o Capitão Virgulino Ferreira (Lampião) e seu bando".
Achei extraordinário, porque pela primeira vez o Lampião estava tendo um status de herói numa placa na parede de igreja. Uma placa de rua. Fiquei muito impressionado. Daí fomos a Juazeiro do Norte, conheci muita gente. Aquilo era um universo inteiramente novo. Foi crescendo em mim esse desejo de fazer, de transformar tudo isso, todo esse cabedal, toda essa riqueza, numa exposição.
No Canindé tem uma catedral extraordinária. No meio daquele deserto, aparece uma escultura de 30 metros de São Francisco de Canindé. É um universo tão extraordinário, tão profundo, tão contrito, tão próximo de Deus e dos santos... Que é pra entender aquela imensão seca, árida e quente.
Aí fui me aproximando daquilo tudo, fui buscando a literatura de cordel, a gravura de cordel. Foi uma experiência pessoal que transformei numa exposição. Junte tudo isso à questão de Antonio Conselheiro e do Padre Cícero. Foi muito interessante saber a história de Padre Lourenço de Caldeirão. A comunidade foi destruída com bombardeio. Quais interesses, políticos ou sociais, para a destruição do Caldeirão? A quem incomodava? Aquilo era uma terra extretamente árida...
Terra Magazine: Como curador, e isso está evidente na exposição do Sertão, você põe em contato a arte popular com a chamada arte erudita. Lado a lado. Se não é um confronto, ao menos cria uma tensão entre o popular e o erudito. É uma provocação? No Brasil sempre se discutiu o significado da arte popular. Lina Bo Bardi discutia essa questão. Você já consegue chegar a uma definição da arte popular brasileira?
EA: Não é uma provocação. É muito mais uma intenção de jogar. É um jogo, as forças opostas de um País que não quer se ver, não tem interesse em se ver. Um jogo com a arte que a gente chamaria de erudita, que não é mais popular, mas é uma arte urbana. O que me interessa nessa questão são alguns dogmas que a gente precisa criar com a arte popular brasileira.
Um deles é o da permanência, da continuidade de uma arte que nasce espontânea. Em princípio, ela deveria atender a um circulo pequeno e, de repente, o mercado destrói, porque vem as encomendas externas. É possível ter uma convivência, ver uma coisa e outra sem o preconceito de estabelecer paradigmas. Brasil é mais isto. Essa produção é verdadeira, é genuína, tem suas profundas raízes ancestrais e não sofre da defasagem da arte erudita, das procuras internacionais, dos "ismos" vários - impressionismo, cubismo, etc.
De uma certa forma, ela (arte erudita) fez nascer uma arte quase de segunda classe. Porque, no fundo, tenta olhar para fora e esquecer de ver a sua genuinidade. Minha tentativa é sempre essa, achar que nós temos que trazer sempre à tona esses representantes do povo. E é claro que se não chegou, porque a academia não está voltada pra esse assunto, a uma definição histórica disso. Vitalino e Agnaldo Manoel dos Santos, que não estão associados a esta arte vista de fora, são tradutores da nossa verdadeira origem.
Terra Magazine: Essa sua postura diverge de um modelo europeu de curadoria?
EA: Podem existir as duas coisas. Outro dia alguém estava me falando que quando Anita Malfatti e Tarsila do Amaral voltam seus olhos pro Brasil, elas deixam de ser importantes. Ou seja, elas são importantes quando imitam (Fernand) Léger ou quando uma delas é uma "impressionista alemã". Ao se voltarem para o Brasil, deixam de ser interessantes para os críticos. O Brasil não tem cura. É muito interessante que toda a grande produção de Almeida Júnior, como "O picador de fumo", foi feita na Europa. Você só descobre o Brasil que estava em você quando está longe.
Terra Magazine: Por paralelismo, até.
EA: É uma coisa única. Vem um antropólogo como Roger Bastide e decobre a África que existe no Brasil. Ninguém descobre a África aqui! E vem também um (Pirre) Verger para descobrir um universo que é real e que só eles, com os olhos deles de velha Europa, foram capazes de ver. Por que será?
Terra Magazine: E há o caso de Claude Lévi-Strauss, com as pesquisas sobre os mitos indígenas.
EA: Sim, Lévi-Strauss e toda essa possibilidade de compreensão desse universo brasileiro, de como ele é original, de como ele é único. Será a gente aqui não pode ver isso?
Terra Magazine: Essa "descoberta" do Brasil, depois de experiências artísticas na Europa, marcou igualmente a geração modernista. Em 2012, a Semana de Arte Moderna de 1922 faz 90 anos. É perceptível o legado dessa Semana, ainda hoje, na arte brasileira?
EA: Eu não sei se tem legado (risos). Desse legado sobra apenas Mário de Andrade, que é um sujeito extraordinário. Esse, sim, conhecia o Brasil profundo. Aliás, ele nunca saiu do Brasil. A Semana foi uma balela, uma meia dúzia de intrépidos senhores.
Terra Magazine: Olha lá, você vai brigar com meia USP...
EA: Sobrou mesmo Mário de Andrade. Di Cavalcanti estava no começo, era o começo acadêmico do (Víctor) Brecheret, além de outros artistas que nem foram adiante. Essas pessoas não foram além daquele momento. Aí, claro, você tem Guiomar Novaes, que continua sendo uma grande intérprete de Chopin, tem um Heitor Villa-Lobos, que é um grande músico, mas não é grande por causa da Semana, mesmo porque em uma semana ninguém se torna modernista. Eram isso mesmo: intrépidos senhores da sociedade de São Paulo, que se esqueciam que Dona Viridiana Prado, o grande símbolo, morava em seu palacete francês. Como esse é um país que tem por princípio a ambiguidade, então isso explica muita coisa. Quando você pensa que não tem raça, mas tem racismo... Toda a proposição que se faz tem sempre os dois lados.
Terra Magazine: Você fala em relação à discussão sobre a validade das ações afirmativas?
EA: Acho que, inclusive, do ponto de vista de ações afirmativas, é impressionante que, em pleno século 21, o Brasil não tenha conseguido formar uma sociedade múltipla, onde entram negros, mulatos, índios e brancos. Meia dúzia de intelectuais ainda são contra as cotas porque o Brasil vai criar uma "situação" de raça igual aos Estados Unidos.
Será que essas pessoas não se mancam? Será que eles não tem os olhos? A sociedade americana pode dar exemplo de uma sociedade racista, preconceituosa, mas onde se convive com os mesmo direitos civis. Por que o Brasil não tem um diplomata negro? Por que não tem um ministro negro? Por que não tem um governador negro, se 60% da população é negra ou afrodescendente? Que história é essa? Por que essa ausência, se chegam ao Brasil negros da política americana ou africana? Os negros daqui são os porteiros, os seguranças, os que servem café, os garçons dos restaurantes. O que é isso?
Terra Magazine: O próprio Machado de Assis ficou branco, na propaganda da Caixa.
EA: Pois é. Quando tem alguém que presta, vira branco. Por que o Ferreira Gullar sai do alto da sua poesia e da sua erudição pra dizer que não existe literatura na África? Será que ele não sabe que a Nigéria tem um poeta que é Prêmio Nobel de Literatura (Wole Soyinka)? Será que ele não sabe? O que ele ambiciona (o Nobel), a Nigéria já tem! E aí volta: por que o Museu Afro não faz parte da mídia? Por que a mídia não celebra o Museu Afro Brasil? Porque incomoda, porque aquilo está na garganta dessa sociedade que acha que lugar de negro é na África. Que o lugar do negro é numa África imaginária, porque eles não sabem nem o que é a África.
Terra Magazine: Quando veem uma exposição sobre os sertões, no espaço do Museu Afro Brasil, há pessoas que perguntam: "Mas não é sobre negro?". O que você pensa desse tipo de questionamento?
EA: Essa é a visão do Brasil, uma visão limitada. Quando você propõe uma coisa, as pessoas não conseguem... A questão do preconceito é tão psicológica, que as pessoas não conseguem abstrair ou transcender. Quando você fala de Afro Brasil, está falando de tudo: da Europa, de Portugal, do Brasil, que tem as suas ligações profundas, inclusive com a África. Isso envolve tudo. É um museu que tem uma teia imensa e que as pessoas continuam achando que é museu de macumba. Pelo preconceito, pelo estigma. Ninguém consegue sair do estigma, gente! Quando você fala de brasilidade e de afrobrasilidade, você está dentro de um estigma, em princípio suscitando questões de estigmas. Não consigo entender!
Fonte: Terra Magazine
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sábado, 10 de dezembro de 2011
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