O ano era 1966 e o sacerdote recém-ordenado Jaime Ortega y Alamino estava num dos campos de trabalhos forçado instalados pelo governo comunista de Cuba.
Foram oito meses cortando cana e mata nas chamadas Umaps (Unidades Militares de Ajuda à Produção), para onde foram levados entre 1965 e 1968 religiosos, gays e os que em geral se negavam a fazer serviço militar.
Mais de quatro décadas depois, o agora cardeal arcebispo de Havana, 75 anos, diz que não se deixou marcar pela experiência e faz um paralelo com os quase 130 prisioneiros políticos que ele ajudou a tirar da cadeia em 2010, numa inédita mediação com o governo Raúl Castro.
"Vi pessoas aqui que estiveram presas, desses chamados políticos, que ficaram 15 anos na cadeia e saíram sem rancor [...]. Vi outros que saem em estado de rebeldia. Evidentemente, dos que saem em estado de rebeldia pode haver cristãos e não cristãos. [...] Há muito de temperamento aí. Mas a fé ajuda a que nós não fiquemos fixados na história porque dessa maneira não se pode viver", disse.
Em entrevista à Folha em Havana, Ortega afirmou que o canal para que ocorram novas liberações de presos políticos está aberto, ainda.
No comando de uma instituição com influência crescente em Cuba, Jaime Ortega defendeu o espaço de debate tolerado criado pelas publicações católicas "Espacio Laical" e "Palavra Nova".
Disse ter convicção de que as reformas econômicas na ilha são "irreversíveis", apesar das resistências internas, e levam carga política.
"Há uma espécie de projeção futura de abertura, e já não é um campo somente econômico", disse ele, ao comentar discurso no qual Raúl afirmou, em dezembro, que um não militante do Partido Comunista pode ocupar cargos públicos.
Na entrevista abaixo, o cardeal diz que o Brasil pode ter papel "fundamental" nas mudanças na ilha dos Castro, repassa os momentos sombrios da relação da igreja e a revolução e explica que a visita de Benedito 16 a Havana, em março, é uma "prioridade" para o papa desde que ele foi nomeado.
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Folha - O processo de mediação entre o sr. e o governo cubano com relação aos presos políticos terminou? Como responde aos críticos da negociação?
Jaime Ortega - Nunca compreendi porque criticaram. É a primeira gestão que se dá em questões desse gênero talvez em muito tempo e tornou possível que eles fossem libertados. Para além deles [maridos das Damas de Branco, o chamado "grupo dos 75"], ao todo saíram quase 130 presos que poderiam ter causas muito relacionadas com a política.
Não se encerraram as negociações. O governo disse: se se apresenta algum caso, vocês me comunicam. Aqui se apresentam muitos casos de presos que não caem já na categoria de presos simplesmente por lutas civis, presos que se chamam pacíficos no sentido que fizeram protestos pacíficos, mas pessoas que cometeram algum tipo de crime, que feriram alguém, que pode ter um sentido político, mas que está marcado por sabotagens, por ações violentas e que feriram pessoas. Nesses casos, eles sabiam desde o início que não seriam incluídos. Não se apresentou nenhum outro.
Por isso me chama atenção que governos estrangeiros seguem dizendo: liberem a todos os prisioneiros políticos. Mas não se apresenta essa lista de presos políticos dessa categoria realmente civil, pacífica, de condenações como aquelas que deram início a esse processo que se pode chamar de mediação.
A igreja mantém duas revistas e encontros de debate em Cuba. Que papel a igreja quer ter nesse momento de transição?
É um espaço de intercâmbio de pensamento que tem a ver com a realidade de Cuba agora e como se quer melhorar em termos de transformações econômicas e sociais também. É um momento muito importante. Em Cuba não se usa a palavra "transição", porque transição é passar a outra coisa, segundo os conceitos que há em pensamento do governo. Fala-se de um processo de atualização, processo mudanças, mas como transição indica sair de um ponto e chegar a outro... As mudanças são abertas e não indicam o ponto de chegada.
Nós não nos referimos ao ponto de chegada, mas o ponto de partida que é o importante. Como podemos ajudar que um pensamento novo, verdadeiramente novo entre na vida de muitos cubanos daqui e de fora.
Em dezembro o senhor pediu que as reformas econômicas caminhem "sem tropeços". Em outras oportunidades, a igreja pediu mais rapidez nas mudanças. De que o sr. fala?
Refiro-me a resistências internas que podem haver entre pessoas de pensamento velho, inclusive um pensamento socialista defasado: que não querem nada de propriedade de privada. Acredito que é necessário um saneamento que lhe custa ao próprio governo fazer. Por outro lado, pessoas que são observadoras fora dos processos ativos do governo às vezes têm temor de que haja retrocessos, como aconteceu no passado. Temem que seja uma abertura tática por necessidade do momento, e que depois se retome o modelo antigo, mais fechado, mais duro. Eu tenho a impressão que estamos num processo irreversível. E creio que é mais que uma impressão. Tenho essa convicção já por tudo que tenho visto, ouvido e experimentado nesse tempo.
O que sr. espera ver em Cuba daqui a cinco anos? Podemos esperar pluralismo político?
Primeiro, ninguém sabe o tempo da vida, isso está nas mãos do Senhor. Depois, não falo de uma transição que teria como ponto de partida essas mudanças e que teriam como ponto de chegada mudanças políticas. O ponto de chegada desconheço, mas é muito importante apoiar todas as mudanças no ponto de partida. Porque sempre toda mudança econômico-social inclui uma mudança, de certo modo, política. Quando alguém tem liberdade de empreender, de investir algum dinheiro num bem pessoal ou comunitário que tenha benefício próprios, quando há possibilidade de comprar vender bens como casas e automóveis, tudo isso a pessoa sente que ganhou espaços que são sociais e espaços que são também, em certo modo, políticos, no sentido que a pessoa se sente mais ativa e livre na sociedade. É isso que posso ver. Mas o ponto de chegada desconheço, porque não posso adivinhar.
Como estão as relações entre a igreja e o governo cubano agora?
Começou a melhorar na década de 80. Pouco a pouco, lentamente, foram sendo abandonados os esquemas muito soviéticos, mas que perduraram praticamente até os nossos dias.
Mas sempre dando passos à frente, sem nenhum recuo.
A visita do papa João Paulo 2º [em 1998] conseguiu fazer o mundo ver que existia uma igreja em Cuba que poderia reunir, comunicar, convocar, que era viva. A visita deixou uma nova atitude, uma nova percepção de que somos um povo onde há revolucionários, crentes, crentes-revolucionários.
Na questão do mercado de trabalho, os católicos sempre tiveram postos de segunda ordem e depois foram ocupando outros lugares, cátedras universitárias, cargos mais proeminentes.
É muito interessante o que declarou o presidente Raúl Castro na última sessão da Assembleia Nacional: "Por que não poderia ser ministro alguém que não seja militante do partido?". Há uma espécie de projeção futura de abertura, e já não é um campo somente econômico, mas também em outros campos.
Integrantes do partido e o próprio governo falam com ressentimento e acusam a igreja de ter sido pró-espanhóis ou pró-Miami. O que o sr. diz?
Bom, pode ter havido [ressentimento], mas não creio que haja hoje tanto. A igreja tratou de estar presente em Cuba com um sentido patriótico. Sempre teve uma distância crítica do governo cubano, às vezes com lealdade. Dissemos o que pensamos e às vezes não fomos compreendidos.
O senhor. esteve nos campos de trabalho forçado. Pode falar sobre isso?
Foi um grande erro que já faz tempo eles reconhecem. Sacerdotes, eram três. Eu já era sacerdote, já havia regressado de meus estudos. Com dois anos de ordenado, me levaram para lá.
A experiência é dura, interessantemente dura. Questionavam minhas motivações e valorizavam, apesar disso, o sacerdote jovem que eu era, com 20 e poucos anos. Valorizavam tanto que me chamavam de padre.
E quando um chefe disse uma vez: "Ele tem o nome dele ou seu número", responderam: "Para nós é padre". Estive oito meses lá. Era trabalho de campo, de cortar cana, de cortar mata, que era mais difícil. Era mata alta, muito dura.
Eu diria que pode haver pessoas que ficam marcadas pelos fatos dolorosos, tristes da vida para sempre. Eu não deixo que essas coisas me marquem, porque se não a gente segue considerando a realidade como foi naquele momento. Hoje a realidade é outra. O mundo vai variando.
Vi pessoas aqui que estiveram presos, desses chamados políticos, que ficaram 15 anos na cadeia e saíram sem rancor, com um sentimento de perdão mesmo com aquela injustiça que sofreram.
No primeiro momento em que saí, o bispo me disse: "Passa um mês em Havana, descansando". Havia uns sacerdotes canadenses aqui, que tinham uma casa, alguns com quem eu tinha estudado.
E eu fui. Passei um mês e nos primeiros momentos, se eu ia pegar um ônibus e nele havia um militar, parecia que eu tinha que saudá-lo ou que ele estava olhando para mim.
Até que na terceira vez que isso aconteceu disse para mim mesmo: "Já chega. Eu já estou aqui, já não há problemas." Pude me reinserir no mundo e voltar a ser como eu era sempre: otimista, confiante. Caso contrário, não teria sido possível.
Qual o papel de Frei Betto no degelo entre as relações da igreja e da revolução?
No livro de Frei Betto "Fidel e a Religião" --no qual, eu diria, gosto mais das respostas de Fidel do que das perguntas de Frei Betto--, Fidel teve respostas muito abertas e não caiu em nenhum tipo de acosso para dizer algo contra o papa, contra a igreja, contra a educação católica que recebeu. Foi bastante bem, diria eu. Esse livro, do qual se vendeu mais de 1 milhão de exemplares, foi o primeiro desbloqueio do tabu religioso que havia em Cuba. Foi uma contribuição positiva pela resposta que Fidel pode dar lá.
Que papel pode ter o Brasil nas reformas de Cuba?
O Brasil tem um papel fundamental. É um grande país, é uma potência no sentido econômico, isso é indiscutível. O Brasil é latino-americano, dialoga com todas as nações grandes e pequenas.
Não é uma potência com armas nucleares, com exércitos ameaçadores. É uma potência que, se mantém essa atitude fraterna como todos os países latino-americanos, ajuda a criar uma realidade nova na região. Todas as nações poderão olhar a alguém que não pretende domínio e sim ajuda, colaboração.
O que desejo para o Brasil, que vem de baixo e tem tantas riquezas e possibilidades, é que o fato de tê-las não o faça distante de seus irmãos e que tenha um papel que para mim é fundamental.
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http://www1.folha.uol.com.br/mundo/1050768-cuba-esta-em-um-processo-irreversivel-de-mudanca-diz-cardeal.shtml
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012
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