sábado, 9 de junho de 2012
A evolução silenciosa da fala
O macaco-caranguejeiro, do Sudeste Asiático, usado em estudo sobre evolução da fala (foto: E.K. Veland/CC
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UM DOS ENIGMAS mais importantes no estudo da evolução da linguagem falada na espécie humana diz respeito não às pessoas, mas a nossos primos chimpanzés. Por que esses macacos não parecem ter a mínima capacidade de se comunicar pela fala? Em estudos comportamentais, chimpanzés muitas vezes surpreendem cientistas com sua capacidade de se comunicar por gestos, mas tentativas de ensiná-los um código fonético têm sido geralmente um fiasco.
Cientistas sabem que isso ocorre porque o aparelho fonador desses macacos não é adequado para produzir uma gama variada de sons. Mas por que nosso parente mais próximo na árvore evolutiva não exibe uma capacidade semelhante? Se sabemos que a evolução molda as caraterísticas das espécies de maneira gradual, será que as vocalizações dos macacos não lembram em alguma coisa a linguagem humana?
A reposta para essa pergunta é: provavelmente não. A comunicação fonética entre macacos é muito limitada, e não sabemos muito bem o que os ancestrais comuns que temos com outros primatas nos legaram para que começássemos a falar. Espécies como o macaco-vervet (Chlorocebus pygerythrus) são famosos entre biólogos por usaram diferentes tipos de grunhido ao avisar companheiros sobre predadores. O sons que emitem ao avistar águias, leopardos ou cobras são distintos, de forma que os macacos logo sabem se precisam subir ou descer da árvore para fugir do perigo.
Mas o macaco-vervet é uma espécie relativamente distante dos humanos no mundo primata, e é improvável que a linguagem fonética humana tenha evoluído diretamente de um ancestral anterior. Chimpanzés, os primos mais próximos dos humanos, também emitem sons, mas esses ruídos em geral são uma capacidade inata, e não aprendida por cultura, como no caso dos vervet. Além disso, os sons que eles usam não requerem o tipo de coordenação muscular sofisticada que teria evoluído na direção de uma linguagem.
Como chimpanzés têm uma razoável habilidade de comunicação por sinais, porém, alguns teóricos sugerem que nossa fala evoluiu a partir de uma forma de linguagem gestual usada anteriormente. Mas como as palavras saltaram de nossas mãos para nossos lábios? A resposta é que nossos lábios podem ser usados para fazer gestos, além de fazer sons, teoria que o biólogo Peter MacNeilage defende desde a década de 1970. Restava aos biólogos encontrar alguma evidência evolutiva para essa hipótese, porém, e essa lacuna está começando a ser fechada agora.
Em 2009, cientistas do Laboratório de Etologia Comparada dos NIH (Institutos Nacionais de Saúde) mostraram como fêmeas de macaco-reso usam sinais faciais para se comunicar com seus filhotes. Um dos gestos feitos por essas macacas é o que cientistas batizaram de lip-smaking, um abre-e-fecha rápido dos lábios, sem produzir som. O interessante sobre esse tipo de comunicação por “careta” (veja vídeo) é que ele é um gesto usado por chimpanzés também, e muitos outros macacos.
Por mais curiosas que as caretas dos macacos-resos sejam, porém, será que esses gestos faciais têm algo a ver com o controle muscular para produzir a fala?
Um estudo publicado hoje, finalmente, parece trazer a resposta para essa questão. Asif Ghazanfar, biólogo da Universidade de Princeton (EUA) e Tecumseh Fitch, da Universidade de Viena, levaram a seu laboratório alguns macacos-caranguejeiros (Macaca fascicularis) e os filmou usando uma câmera especial de raios-X enquanto praticavam o lip-smacking.
Vendo com clareza toda a musculatura e ossatura do animal, foi possível ver que os tipos de movimentos de lábios, mandíbula, língua e laringe são similares àqueles necessários à fala. O padrão de movimento é bem diferente daquele da mastigação, dizem os cientistas, e o ritmo com que o lip-smacking é feito —com músculos mudando de posição a cada 0,2 segundo— é particularmente similar ao da fala humana.
“Esses dados dão apoio empírico à ideia de que a fala humana evoluiu de expressões faciais rítmicas de primatas ancestrais”, escreveram Fitch e Ghazanfar no estudo que descreve o experimento na revista “Current Biology”. “Nossos dados mostram que as similaridades entre o lip-smacking dos macacos e a fala humana vai além dos movimentos orais visíveis na face, e inclui as dinâmicas da língua e do osso hióide [da base da língua].”
A anatomia da face dos macacos descrita no trabalho é análoga àquela que, nos humanos, regula os sons produzidos pelas cordas vocais. Nos símios, porém, seu uso é feito de maneira muda. É possível, então, que a linguagem fonética humana tenha começado como uma espécie de leitura labial. Só depois é que as caretas feitas com a boca teriam adquirido o papel de controlar sons, em vez de passar mensagens visuais. Talvez os primeiros hominídeos tenham se beneficiado do fato de que seu aparelho fonador tinha forma mais adequada para isso.
Pode parecer paradoxal, mas os estudos mais recentes levam a crer que a evolução da fala humana estava passando por um estágio crucial justamente quando nossos ancestrais primatas interagiam em silêncio.
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PS. Por um descuido meu, na primeira versão deste texto não citei o nome do autor principal do estudo com os macacos-caranguejeiros, Asif Ghazanfar. Além disso, eu não tinha notado que o segundo autor do estudo, Daniel Takahashi, é cientista brasileiro formado pela USP. Sidarta Ribeiro, do Instituto do Cérebro da UFRN, foi quem me avisou.
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http://teoriadetudo.blogfolha.uol.com.br/2012/05/31/a-evolucao-silenciosa-da-fala/
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